21 de abril de 2005

Alcova dos Poemas

Após caminhar trôpego, sem olhos para o horizonte, ele amargava o ácido de um dilúvio de amores obsoletos. O sol lhe parecia um adversário ferrenho para quem já caminhava fazia anos. Seus pés em brasa, queimavam o chão árido, suas lembranças desenhavam as sombras que perseguiam mordazes os sonhos daquele lisboeta. Neste ínterim, o maltrapilho desenhava com seus passos uma trilha infeliz, sem a surda e aguçada presença de um fio que fosse de esperança. Os cegos que surgiam pelo caminho indicavam para onde ele deveria seguir. E como um mudo galopante, ele foi, com sua sublime inocência, para um vale d’onde somente os amaldiçoados conseguem se ver livre. Diante os tropeços inadiáveis, ele rubricava com os pés cada passo que praticava e registrava com sua retina fadigada a obra de um ser mágico e sublimemente superior. Mas absolutamente nada lhe tirava o foco do seu desespero iminente. Seu mais profundo sentimento era o de condenação ao paraíso, onde o demônio é um rei libertino. Dentro de seus bolsos apenas um pedaço de filtro, queimado horas antes com o objetivo de florear a viagem, mas nem isso conseguia lhe retirar a torpe sensação de miséria e desacordo. Até que a luz se fez alumiar, no alto de um alicerce. Mas era sofrivelmente distante, a luz de cor clara e incandescente. Para conseguir seu acesso, somente se ele expurgasse de dentro de si a cólera de anos de aviltamento endinheirado. Sabia que aquele era um terreno de férteis indagações, d’onde nasceria o cálido sentimento de cumprimento de sua missão terrena. Mas o mudo, guiado por cegos, e com a esperança surda, atinou a escrever alguns versos que lhes eram decorados graças à professora. Debalde. Sua capacidade de desenhar os garranchos sucumbira ao seu extremo ódio. Agora teria a sólida certeza que ele nunca alcançaria a Alcova dos Poemas, onde de seu corpo ele faria um tapete macio, em que seus ossos estariam descansados. E as músicas que lá soavam eram lânguidas e executadas por ninfas nuas elevadas em seus ninhos. Restava-lhe reatar a caminhada lisérgica e lavar seu estômago com água boricada.Era o fim do suplício terreno. Era o início da maldição do paraíso.