31 de maio de 2005

FRAGMENTOS - A Sete Palmos

(...)No cemitério, Tânia batia na porta da casinhola caiada do coveiro. De dentro, Meneandro terminava de esculpir uma imagem em gesso que enfeitaria a esquife de Dona Amandinha que morrera fazia alguns dias, enquanto isso ele escutava música clássica em uma radiola. A porta era esmurrada com veemência, mas Meneandro não escutava já que suas atenções se voltavam para a imagem e seus ouvidos para a música que ressoava uma sinfonia de Bach. A menina Tânia não mais se continha diante da ausência de respostas. Uma chama ardia dentro de seu peito, a obsessão calava qualquer voz da razão, então ela esmurrava e gritava como uma selvagem. Seus berros ecoavam por entre os túmulos e sarcófagos do cemitério. O silêncio sepulcral era violado pelo grito da paixão. Até que o urubu Casemiro surge ao lado de Tânia, que numa insensatez, começa a clamar ajuda para o abutre. A ave assistia os apelos com uma passividade irônica, uma indiferença medonha. Por mais que gritasse, parecia que Tânia não era ouvida em lugar nenhum. Seus apelos eram inócuos. Na sua obtusidade, a menina saiu correndo por entre os túmulos, foi driblando um a um até que caiu de frente sobre o sarcófago de Dona Amandinha, ainda recoberto por flores vermelhas, uma vez que o enterro era recente. O som da queda de Tânia pareceu retumbar nos ouvidos de Meneandro, que imediato estacou sua atividade. Ele se levantou, desligou a radiola e foi ver o que estava acontecendo do lado de fora. Ao sair viu o urubu Casemiro mancando em direção à casinhola do coveiro, tudo parecia normal. O som dos grilos ditava a trilha sonora de uma noite que tinha um aspecto corriqueiro. A exceção da lua que possuía uma luz diferente, quase irisada. No entanto, Meneandro sentia que algo fugia da rotina. Havia alguém que necessitava dele. Resolveu, então, caminhar por entre os túmulos para averiguar a tranqüilidade que se apresentava.
Com a lanterna no bolso, pois a luz da lua dispensava o uso do aparato luminoso, Meneandro trançava por entre os jazigos e covas com um olhar atento a tudo. Vislumbrava cada escultura, cada epitáfio gravado nas lapides, e via aquilo com orgulho, pois seu trabalho, razão de sua vida, estava ali fixada no chão do campo santo de Nova Glória. Nesse momento possuía a certeza que seus mortos estavam satisfeitos com o seu trabalho e que eles regozijariam do conforto de seus túmulos para o resto da eternidade. Meneandro nutria o doce sentimento que estava cumprindo sua missão na Terra, missão essa que lhe fora concebida pelo destino no momento de sua chegada nesse plano de vida.
O coveiro, então, divisa algo muito estranho que estava tumultuando a paz de Dona Amandinha, a nova residente do cemitério de Nova Glória. Meneandro se adiantou na direção do tumulo recém inaugurado e quando lá chegou percebeu que havia alguém ali caído de bruços. Buscou com as mãos saber quem era e quando virou o corpo percebeu que se tratava de Tânia. O coveiro teve a nítida impressão que a menina estava morta e procurou chamá-la no intento de despertá-la, mas Tânia se mantinha imóvel. O desespero tomou conta do coveiro que buscou a pulsação e a respiração daquele corpo desfalecido. Porém, nenhum sinal vital podia ser sentido. Um último recurso que poderia ser usado: a tentativa de reavivar. Meneandro procurou fazer massagens no coração e respiração boca-a-boca. Tânia não reagia. Depois de várias tentativas, o coveiro desistiu e caiu em pranto ao ver aquela menina morta em seus braços.
Súbito, Tânia se move. Seus braços se erguem e abraçam a cabeça do coveiro que ainda chorava. Quando se dá conta, Meneandro soergue a cabeça e vê os olhos rutilos de Tânia sorrirem para ele. Num rompante, o coveiro beija a menina sofregamente. Não existia ali mais nada que pudesse ser mais importante. Nem mesmo o fato de estar sobre um túmulo lhe parecia empecilho. Então, Meneandro e Tânia se amaram ali mesmo. Um sexo cálido, mas carinhoso. Sob a luz da lua e cercado por coroas de flores e cravos defuntos, o casal se entregava à libido na dança frenética e lancinante da paixão. Seus corpos nus se enroscavam e se confundiam como se fosse apenas um entre flores e cheiros. As imagens, as lápides, os sarcófagos, até mesmo Casemiro assistiam a tudo como voyeurs sobrenaturais e silenciosos. Tânia flutuava lépida, enquanto Meneandro procurava álibis. Ambos gozaram ruidosamente.(...)

22 de maio de 2005

O Retrato...

Uma réstia de luz amarela solar invadia aquele ambiente mórbido por uma fresta da persiana e iluminava a poeira densa que pairava no ar. Apesar do sol estar soberano nos céus, a sala se mantinha inócua, envolvida por uma penumbra úmida. O cheiro que ali se olfatava era de umas vidas tépidas, sobrevivendo apenas de reminiscências de um passado muito recente. A cor que se desenhava era um encarnado sangue, jorrando infinitamente pelos tapetes felpudos e paredes ásperas. O amor naquele ambiente fora substituído pelo sentimento de posse e, como conseqüência, a morte se apresentara com todos os seus eflúvios.
Sentado de frete para a janela encerrada numa película, Jorge amava seu charuto de Havana com a língua esponjosa. Seu olhar perdido no tempo dava-lhe um ar de regozijo, o qual parecia ser externado pela fumaça mal cheirosa daquele tabaco. O que havia naquele momento, senão um doce sabor de alegria, mesmo sublimada pelo ódio que lhe acometera. As cinzas eram batidas com displicência num copo sujo improvisado de cinzeiro. A garrafa de Chivas Regal vazia compunha o retrato de uma leve lucidez embriagada. Mas não era a bebida que lhe entorpecia, mas sim o tenro sentimento da vingança.
Depois de um casamento considerado pelos pares como aberto e livre, Jorge finalmente botara fim àquela situação. Inicialmente aceitara aquela relação com ares tão modernos e cosmopolitas. Todavia, o sexo entre eles e seus respectivos parceiros estavam se tornando aos poucos uma lúbrica tortura. O marido se via numa situação privilegiada, pois poderia ter em seus braços a mulher que desejasse sem a intromissão de sua esposa. Karina, sua esposa, já parecia se esbaldar com aquele ambiente libertino.
Tudo ocorrera com a normalidade das novas relações humanas. Mas o homem guarda em si resquícios de sua pré-história. Hoje vemos Neandertais a fins de parecerem homo-digitalis. No entanto, o destino traçado pela sociedade machista se cumpriu. Jorge se regozijava com o cubano e a embriaguez do whisky e também ao ver Karina nua, esvaindo sangue pelos furos de bala. Ao lado dela, o filho, também nu, não menos morto. Morreram no pecado. Pecado permitido pelas novas relações humanas. Um retrato bem enquadrado daquele amor em seu formato mínimo.

8 de maio de 2005

O Primo Basilio - Eça de Queiroz

Tinha suspirado. Tinha beijado o papel devotamente
Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades
E o seu orgulho dilatado em seu calor amoroso que saía delas
Como um corpo ressequido que se estira num banho tépido
Sentia um acréscimo do estímulo por si mesma
E parecia-lhe que entrava enfim uma existência superiormente interessante
Onde cada hora tinha o seu intuito diferente
Cada passo conduzia um êxtase
E a alma se cobria de um luxo radioso de sensações