17 de abril de 2004

GOTA D’ÁGUA


Ninguém me percebe. Sou ínfimo, mas indispensável. Que vida me nega enquanto sou parte de sua essência mais fugaz? Um início de um mesmo fim e o fim sem recomeço.
Sejamos francos, vocês me conhecem? Podem responder sem constrangimento que sou um estranho. Vocês nunca me viram mais gordo, e nem mais limpo. Sou suave e imperceptível. Mas nada nesse mundo, absolutamente nada funcionaria sem a minha presença.
Deveria ser tratado como um rei. “Sua majetastade a gota”. Mas vocês me negam. Como se negassem sua própria condição de humanos. Sim, pois sua responsabilidade de vida está nos meus braços, nos meus laços, nas minhas pernas.
Estou presente no perdigoto do seu beijo, na lágrima da sua tristeza, na terça parte desse mundo e setenta por cento dos seus corpos.
Sou imortal, mas não vou sobreviver dignamente com tantos abusos com a minha paciência.Vocês me jogam fora para a vaidade dos seus passeios, dos seus carros e até dos seus corpos.
Sou muito boa pessoa, mas não pensem que eu sou idiota. Quando vocês abusam da minha boa vontade. Eu me nego terminantemente a molhar suas plantações, seu chão. E então vocês sentem o quanto sou pirracenta. Sou pirracenta mesmo e sempre serei. Eu preciso gostar de mim, para que finalmente eu tenha a devida atenção de vocês.
Não posso mais suportar tanta humilhação. Eu subo do chão em vapor, me embrenho entre as nuvens e caio, abençoada, sobre seus olhos, suas couves, sua sujeira nojenta e cheia de remelas.
Mas não pensem que tenho raiva de vocês. Imagina se eu haveria de ter revolta contra o mundo. Afinal minha função nesse mundo é dar vida ao que peleja no subsolo, lubrificar quem clama por um pouco de vida.
Por aqui estou por todos os lados. Mas vocês já imaginaram como é a situação daqueles que são privados da minha graça. Seus irmãos do norte morrem por mim. Vê, como eu sou necessária! E mesmo sabendo como sou indispensável, vocês me jogam por aí, me envenenam com suas fezes e me matam com sua poeira.
Estou para servir e sou assassinada. Saibam que a cada dia serei mais e mais valorizada. Minha posse será como ter ouro hoje. Se hoje sou a razão de sua vida, no futuro serei pomo de discórdia entre os povos.
A última guerra do mundo será pela água. Mas calma. Por enquanto sou apenas uma gota d`água e nada mais que isso. Sou uma metonímia, a parte de um todo. Mesmo assim, me levem pra casa, cuidem de mim, pois só assim posso gozar da eternidade. Preciso do seu cuidado, do seu carinho.
Me dêem vida, que eu retribuirei com a doce refrescância de um banho macio, o alívio de belo copo de suco.
Me bebam, se lavem, se hidratem. Me amem, e, finalmente, vivam. Vivam com a paz do seu futuro glorioso. Vivam.

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