22 de maio de 2005

O Retrato...

Uma réstia de luz amarela solar invadia aquele ambiente mórbido por uma fresta da persiana e iluminava a poeira densa que pairava no ar. Apesar do sol estar soberano nos céus, a sala se mantinha inócua, envolvida por uma penumbra úmida. O cheiro que ali se olfatava era de umas vidas tépidas, sobrevivendo apenas de reminiscências de um passado muito recente. A cor que se desenhava era um encarnado sangue, jorrando infinitamente pelos tapetes felpudos e paredes ásperas. O amor naquele ambiente fora substituído pelo sentimento de posse e, como conseqüência, a morte se apresentara com todos os seus eflúvios.
Sentado de frete para a janela encerrada numa película, Jorge amava seu charuto de Havana com a língua esponjosa. Seu olhar perdido no tempo dava-lhe um ar de regozijo, o qual parecia ser externado pela fumaça mal cheirosa daquele tabaco. O que havia naquele momento, senão um doce sabor de alegria, mesmo sublimada pelo ódio que lhe acometera. As cinzas eram batidas com displicência num copo sujo improvisado de cinzeiro. A garrafa de Chivas Regal vazia compunha o retrato de uma leve lucidez embriagada. Mas não era a bebida que lhe entorpecia, mas sim o tenro sentimento da vingança.
Depois de um casamento considerado pelos pares como aberto e livre, Jorge finalmente botara fim àquela situação. Inicialmente aceitara aquela relação com ares tão modernos e cosmopolitas. Todavia, o sexo entre eles e seus respectivos parceiros estavam se tornando aos poucos uma lúbrica tortura. O marido se via numa situação privilegiada, pois poderia ter em seus braços a mulher que desejasse sem a intromissão de sua esposa. Karina, sua esposa, já parecia se esbaldar com aquele ambiente libertino.
Tudo ocorrera com a normalidade das novas relações humanas. Mas o homem guarda em si resquícios de sua pré-história. Hoje vemos Neandertais a fins de parecerem homo-digitalis. No entanto, o destino traçado pela sociedade machista se cumpriu. Jorge se regozijava com o cubano e a embriaguez do whisky e também ao ver Karina nua, esvaindo sangue pelos furos de bala. Ao lado dela, o filho, também nu, não menos morto. Morreram no pecado. Pecado permitido pelas novas relações humanas. Um retrato bem enquadrado daquele amor em seu formato mínimo.

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